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Sítio do Cajueiro: Lembrar é (R)existir

Coque na década de 70. Fonte: Diario de Pernambuco

A comunidade do Coque é uma ocupação centenária no coração do Recife. Seu surgimento remonta, provavelmente, à construção do porto da cidade, entre 1909 e 1918, período no qual milhares de pessoas do interior de Pernambuco migraram para a capital em busca da promessa de melhores condições de vida. Apesar de ser, naquela época, uma imensa área alagada quase permanentemente pelo Rio Capibaribe, a região chamou a atenção dos primeiros moradores pela proximidade com as principais áreas da cidade, sobretudo das praias e do próprio centro. Essa localização privilegiada atraiu os moradores e os estimulou a criar uma comunidade onde antes só havia água e mangue. 

 

Os moradores do Coque construíram até o chão em que viriam a morar. Não casualmente, o pertencimento a essa territorialidade e o esforço para permanecer aí sempre foram traços marcantes dessa comunidade.

Há muitas histórias sobre o início da ocupação do Coque e elas não se excluem, parecem diversas facetas de um processo que estava ocorrendo na cidade inteira: pessoas vindo do interior em busca, sobretudo, de emprego e ocupando territórios historicamente abandonados da cidade, dando vida a estes e complexificando a vida da própria capital. Uma das histórias que se conta é a de que a comunidade começou a se formar a partir da ocupação do Sítio do Cajueiro, perto do que mais tarde seria a estação do metrô Joana Bezerra, mas que na época era uma linha de trem. O Sítio, como era afetivamente conhecido pelos moradores, era uma das poucas áreas verdes que restaram depois da expansão e da urbanização (ainda que precária e inacabada) da comunidade. Embaixo e ao redor das árvores centenárias (talvez as únicas a testemunhar as transformações passadas pelo território até se tornar o que é hoje), mais de uma centena de famílias construíram suas vidas e se estenderam por três ou quatro gerações.

 

Um desvio é necessário para entendermos o que se passa com o Sítio e porque nos referimos a ele usando os verbos no passado. O Coque foi tomando forma e dimensão num momento em que o Recife também se desenhava melhor enquanto cidade. E a comunidade se viu rodeada pelo que viria a ser uma das áreas mais importantes da capital: próxima a Ilha do Leite, onde está localizado um importante polo médico; a cinco minutos do centro do Recife; a dez minutos do bairro de Boa Viagem, um dos mais ricos da cidade; ao lado do bairro de Afogados, um dos mais importantes centros comerciais da capital; a alguns minutos do bairro do Derby, importante ponto de articulação do sistema de transporte da cidade. Essa localização privilegiada é enfatizada pelos moradores até hoje, em qualquer conversa sobre a vida na comunidade: o Coque é "perto de tudo". Combinando essa localização com a presença de uma estação do metrô e um terminal de integração com os ônibus (hoje, um dos mais importantes e movimentados da capital), é fácil se deslocar do Coque para praticamente qualquer lugar da cidade.

 

Entretanto, a vida dos moradores do Coque não é tranquila como poderia sugerir sua localização. A cobiça pelas terras da comunidade (presente tanto nas empresas do ramo imobiliário quanto nos órgãos públicos) já fez, por um lado, mais da metade da área inicialmente ocupada ser desapropriada e ter os moradores expulsos e/ou transferidos para lugares remotos na Região Metropolitana do Recife. Por outro lado, quase nada foi feito pelos poderes públicos para melhorar a qualidade de vida dos próprios moradores da comunidade, de modo que a comunidade figura, já há um longo tempo, como um dos piores IDH da cidade. Ou seja, ao mesmo tempo em que é apresentada como comunidade carente e, principalmente, violenta e perigosa, a terra do Coque é tomada como área estratégica crucial para o "desenvolvimento" da cidade[1].

 

Esse desenvolvimento se mostra e sempre se mostrou incapaz de incluir os próprios moradores do Coque. Para estes, ou o abandono à própria sorte numa comunidade com problemas básicos de saneamento, saúde, educação, cultura e lazer; ou a expulsão do território que construíram e com o qual tem uma ligação afetiva profunda. A linha do tempo abaixo, ainda em construção, mostra como esse processo de expulsão se repete desde a década de 1970.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voltamos ao Sítio do Cajueiro. Mas não podemos, efetivamente, voltar a ele. O que resta do Sítio? O que os antigos moradores da área podem ainda dizer sobre o Sítio? O Sítio é apenas (mais uma) lembrança vaga do que a comunidade do Coque (e a cidade do Recife) foi? Se sim, essa lembrança será nossa resistência, nossa máquina de guerra frente a esse desenvolvimento que expulsa, segrega, abandona e desampara as pessoas.

Quando os moradores do Sítio começaram a receber as "cartas de despejo", havia uma grande expectativa sobre a realização da Copa do Mundo no Brasil. Será que vai ter Copa? Recife e sua "Arena Pernambuco" acabavam de ser confirmadas como sedes do evento esportivo. As movimentações para organizar a cidade se intensificavam, mas nenhum morador do Sítio poderiam imaginar que no Coque, a 20 quilômetros do local de realização dos 5 jogos da Copa que aconteceram em Recife, os efeitos dessa preparação seriam tão devastadores. O problema é que a Estação Joana Bezerra e o Terminal Integrado adjacente figuravam como pontos principais no esquema de "mobilidade urbana" para a Copa do Mundo de Futebol. A expansão do Terminal de Integração foi implacável: ironicamente, engoliu o campo de futebol próximo à estação e o Sítio do Cajueiro, expulsando, mais uma vez, uma parcela dos moradores do Coque.

 

Cento e noventa famílias, aproximadamente. Não se sabe ao certo, já que os pedidos de informação feitos pelos moradores, junto com a equipe do Projeto Narramundo, não rendem nenhuma informação precisa sobre a questão. O próprio Governo do Estado, responsável pelas obras de expansão do terminal e, consequentemente, pela expulsão dos moradores do Sítio, se nega a fornecer o número exato de pessoas desapropriadas, os valores das indenizações oferecidas e o que foi feito para garantir o direito a moradia das pessoas removidas. O que se sabe é o que, nessa história, repete o padrão da intervenção pública na comunidade do Coque: indenizações irrisórias, o maior número possível de pessoas expulsas, nenhum esforço para assegurar o direito a moradia.



 

Soaria intempestivo repercutir os efeitos da expulsão dos moradores do Sítio do Cajueiro para ampliação do Terminal Integrado. Mas, essa "obra de mobilidade da Copa do Mundo", como tantas outras Brasil afora, não ficaram prontas, um ano depois da realização do evento, quase três anos depois do traumático processo de expulsão. "Tá tudo trancado, ninguém vê. As vezes eu passo lá e fico olhando. Nem uma brecha pra eu ver o que estão fazendo no lugar da minha casa eu vejo" (Dona Mara, antiga moradora do Sítio do Cajueiro). Ou seja, os moradores foram expulsos por causa de uma obra que não foi concluída e não tem previsão de conclusão, e não foram sequer informados sobre o que se faria no lugar das suas casas.

 

Na impossibilidade de encontrar todos os moradores expulsos do Sítio, nossa opção, nessa pesquisa, foi a de recolher os depoimentos dos moradores encontrados e tomá-los como símbolo do modo como os poderes públicos tratam os moradores das comunidades de periferia, do Coque em particular. Os resultados dessa investigação se materializaram em um vídeo ("Sítio do Cajueiro: lembrar é resistir", 2015) e nos textos que serão publicados nesse blog.

Sítio do Cajueiro, 2009. Acervo Coque Vive.

Click na imagem para visualizá-la. 

[1] Essa estratégia de desqualificação de uma determinada área para justificar sua utilização indevida a todo e qualquer custo é amplamente conhecida na nossa cidade. No caso mais recente e notável, o Cais José Estelita é apresentado como área degradada, abandonada, violenta e perigosa. Por outro lado, a especulação imobiliária, recebendo todo o apoio dos poderes públicos, promete transformar a região em um "novo Recife", oferecendo como "alternativa" ao descaso com que historicamente tratamos a região a privatização de uma das últimas áreas com potencial para uso público próxima ao centro da cidade. Ou seja, os poderes públicos abandonam e desqualificam uma determinada região e depois, sob a alegação de "desenvolvimento" oferece aquela mesma região ao uso dos poucos que terão condições econômicas de morar e trabalhar nela.

 

Pedido de Acesso à informação

Através da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei 12.527/2011) enviamos pedidos de informações para o Governo do Estado de Pernambuco e para a Prefeitura do Recife, por meio do Portal da Transparência, que é a ferramenta adotada por ambos para este fim. Solicitamos informações acerca da obra de expansão do Terminal Integrado Joana Bezerra (obra da copa) e acerca da política habitacional na comunidade do Coque/PE.

 

 Embora a Lei tipifique a negativa de prestar informações como crime - por atentar contra o princípio da transparência na Administração Pública – tivemos dificuldade em obter resposta à nossas perguntas. A Lei também diz que se a informação estiver disponível, ela deve ser fornecida imediatamente. Porém, o poder público sempre fornece as informações no limite do prazo dos vinte dias ou até ultrapassando esse limite. Além disso, embora a Lei Federal não possa ser limitada pelos Estados e Municípios, estes podem regulamentá-la, estabelecendo procedimentos específicos para o acesso à informação. Tais regulamentações terminam por dificultar o acesso a elas.

 

A partir das informações obtidas através da Lei de Acesso a Informação, pudemos perceber que há algumas incoerências nos dados fornecidos pelo poder público:

 

A Prefeitura do Recife informa que no período de 2004 a 2014, houve 490 imóveis desapropriados na comunidade do Coque. E reconhece que nesse mesmo período não foi construído nenhum habitacional no bairro. Ou seja, mesmo tendo gerado um déficit habitacional de 490 moradias, não há nenhuma previsão de projeto habitacional para a comunidade. A Secretaria Executiva de Defesa Civil - SEDEC, da Prefeitura do Recife informou ainda que há 22 famílias da comunidade recebendo auxílio moradia. Visto que o auxílio moradia é um benefício cuja função é alugar outro imóvel enquanto o morador aguarda a solução habitacional definitiva, e como a prefeitura reconhece que há 22 famílias recebendo esse auxílio, por que não há previsão de habitacional na comunidade?

 

A procuradoria do Estado informa que 194 imóveis foram desapropriados apenas na obra de ampliação do Terminal Integrado de Joana Bezerra. E todos os imóveis, segundo consta no pedido de informação, foram indenizados. Fica mais uma vez a questão, qual a solução habitacional para essas famílias, visto que elas informam que os valores das indenizações não permitem comprar novos imóveis? Fica ainda outra questão, os moradores entrevistados afirmam que houve a promessa de habitacional e que alguns estão recebendo auxílio moradia. A informação oferecida pelo governo é inverídica?

 

O governo afirma ainda que o prazo para término da obra foi estipulado para maio de 2015, mas até agora (agosto de 2015) a obra ainda não foi entregue à população. 

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